terça-feira, 15 de março de 2016

Pátroclo e Aquiles I


 

A boa da etimologia prega-nos surpresas. Pátroclo é a «glória do Pai», sendo bem possível que Pai seja Zeus. Pátroclo é nesse sentido o contrapeso de Héracles, a glória de Hera. Aquiles para uma boa etimologia é a dor (ainda hoje em dia em inglês «ache» como em headache mostra este significado) e dor do «laos», do «povo em armas». Exactamente a origem do laico, e laicismo.

Até ao momento parece estarmos a brincar com palavras. Há brincadeiras mais perigosas, é verdade. Mas a questão interessa-me noutros planos.

Desde sempre achei que o primeiro ser humano, o primeiro que sai completamente do baixo-relevo de Gilgamesh ou do alto-relevo da Ilíada, é Ulisses. Ulisses tem tudo, do bom e do mau, fada e demónio, humano em suma. As personagens de Ilíada sempre me apareceram mais planas, por vezes altos revelos, mas não se destacando do pano de fundo geral de que apreciavam. Com volume, mas não totalmente descoladas da pedra do templo sobre o qual tinham sido esculpidas.

Somos sempre injustos. Também isso é verdade.

O primeiro casal é Penélope e Ulisses. Pela primeira vez duas pessoas com pleno volume se encontram, sem paixões apressadas, com desejo de fidelidade. Penélope e Ulisses encontram-se também pelas suas semelhanças. São inteligentes. Cada um na sua forma, dentro das suas possibilidades sociais. Mas são um casal. Um casal a serio, não uma história de amor até ao encontro fatal, mas depois do encontro. É depois do encontro quês e desvela a história mais importante. Não é a história do «casaram-se e foram felizes para sempre» numa felicidade remissiva. É exactamente o oposto: «já se tinham casado e eis a felicidade que se encontra». A uma felicidade rugosa, imperfeita, marcada por uma longa separação.

Penélope e Ulisses não se amam por terem ilusões sobre um futuro comum. Amam-se porque sabem que são o presente um do outro. Neste sentido são o verdadeiro primeiro casal da História, o primeiro a ser representado na sua plenitude. Significativo o facto de tanto Odisseu, como Penélope como Telémaco serem unidos não pela deusa do lar, Héstia, ou do casamento, Hera, ou por Afrodite. É Atena quem protege os três. Não há nenhuma «agape» que unifique as relações entre as pessoas, todas as pessoas. É a inteligência, e uma inteligência guerreira que as pode unir.

De novo, pareço divagar.

Voltemos a Pátroclo e Aquiles. A erudição clássica, os filólogos, os antropólogos que se preocupam com a Grécia antiga, e aqui a escola francesa de um Gernet, de um Sergent são magistrais, mostram que havia uma tradição homossexual aristocrática, iniciática guerreira. Estes adjectivos não estão aqui por acaso. Quando se pretende usar os gregos como exemplo para liberdade de costumes é preciso ter cuidado, rever os seus brasoes, se os temos realmente, a nossa coragem, se dela somos dotados, o nosso espírito de aventura, se o possuímos. Não é para todos. Nada nas culturas antigas é para todos. Foi essa capacidade de diferenciação que lhes permitiu ser cultura.

O problema é que Pátroclo e Aquiles transcendem esse esquema. Não o põem em causa, coisa que alguns extremistas iriam logo dizer. Peritos da excepção, do contra-exemplo, gostam de invalidar toda a regra apenas porque são cultores da confusão. Mas a regra nunca impediu a flexibilidade, como gramática nos ensina, com as variantes e a excepções. Mesmo elas tem uma causa, não são prova de anomia, mas de vitalidade.

Os esquemas tradicionais desta homossexualidade ritualizada quebram-se todos com Pátroclo e Aquiles. Aquiles é socialmente dominante, manda Pátroclo preparar as acomodações, e mesmo a comida, mas Pátroclo é um pouco mais velho. Aquiles não pode ser o «eraste» nem Pátroclo o «eromenos», um o amante outro o amado, um o professor, outro o discípulo. Se o mais velho e socialmente o mais apagado isso só pode significar que o esquema tradicional seria cortado.

Mas já o velho discurso de Tétis, com a morte de Pátroclo, lembrando Aquiles de que também existe amor pelas mulheres. Outro corte com a ritualização. Depois da prova o «eromenos» deveria tornar-se adulto, ou seja, casado, ter filhos, largar o seu papel de «eromenos». Ora Aquiles nem é o amante nem o amado ritual, já o vimos. E não larga uma vida que supostamente seria transitória. Adolescente irrecuperável? Seria fácil dizê-lo. Quantas conversas teria tido com Tétis não relatadas por Homero?

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